segunda-feira, maio 18, 2009

poemas da mesma hora


Calidamente me esfumo
No gélido espasmo nocturno
Na incerteza do ciúme

Olho as estrelas sem rumo
Os meus gestos em desaprumo
O meu peito quase lume

Atravesso os rios do meu mar
Descalço vou, sem caminhar
Vou só da força do pensamento

No escuro sinto a poisar
A minha sombra noutro olhar
A minha voz, noutro vento

Dissolvo-me a cada passo
No batente, no compasso
Do abismo que se abre

Sobre o que sobre mim traço
Dessas palavras que rasgo
Desse que em mim não cabe

Calidamente
Sou
O que outrora
Foi gente…

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Não tenho sono
O sono é uma espécie de morte
Que me acorda

Estou desperto
Estou morto
Por já ser hora

Hora de não ser nada
Tempo de ser ausente
Memória de me ser falha
Lonjura de me ser gente

Já não respiro
Apenas transpiro
Uma alma já ausente
O corpo
Mero trapo
Que dispo
Mera existência
Que exijo
Nua

Não importa
Não tenho sono
Nem o sono me tem mais
Estou morto
A ver-me vida
Prostrada, apetecida
Espalhada
No meio da rua

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Tremo
De uma tremura
Pardacenta

Parda de ser
Tremura

Não é frio
Não é estio
Não é coisa do tempo

Tremo
Porque existo
E porque existo
Temo

E não é só de existir
E de sentir
Que existo

Tremo
De um qualquer medo
Pardacento
Do que temo

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Esperei por ti
Não importa se mais uma vida
Até porque não sei se me resta outra

Esperei por ti
Junto da minha desdita
Da vida de me ser pouca

Esperei
Não por esperar
Esperei viver
Esperei amar

E de esperar morri
À espera da vida
À espera de ti

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Poisaram aves em mim
Cansadas de tanto voo
E eu, que nunca voei
Cansado poisei
Na ave que sou…

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Um ultimo cigarro
Um derradeiro poema
Uma ultima palavra

Um ultimo pensamento
Um sombrio sentimento
Um ultimo lanço de escada

Um fechar da porta
Um cessar da hora
Um cair cansado

O ultimo dilema
Deste poema
Deste cigarro…

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Ouve-me!
Lá desses confins de onde não sei
Desses mares por onde jamais errei
Desses mundos que nunca vi

Ouve-me!
Escuta-me, escuta-me bem
Aqui já não sou eu, não é ninguém
Aqui sou, o que perdi

Não te ter
Não é só morrer
É nunca ter sentido

Não te ter
É só viver
Mortalmente, aquém, perdido…

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Passava eu junto do mar
Na esperança dele me tragar
E ser seu por uma vida

Ser apenas uma onda
A embater por afronta
Numa terra prometida

Mas o mar não me levou
E nem onda me sonhou
E nem espuma, eu pude ser

Nesse mar que não me amou
E que na areia deixou
Meu poema, desvanecer…

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Se hoje morrer avisem-me
Acenam-me uma flor ou um adeus
As flores guardem-nas em vós
Só os gestos os tomo, meus

Carreguem em ombros apenas os meus sorrisos
As minhas dignas acções
Toda a minha vil humanidade
Pisem-na com tenacidade
Tomem-na, vossas perdições

Não cantem hinos
Nem aleluias
Dêem-me antes uma eternidade serena

Cantem-me as vossas almas
Como quem diz um poema

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Não teci a morte
Que me tece
Apenas nasci
Para que o tempo me leve

Aqui, sou muitas coisas que não fui
E muitas, sou, que só sonhei

Parto como quem nunca partiu
Nas minhas mãos levo a terra
Que já me cobriu

Não dispus nada
Apenas me deixei levar
Da cova da minha vida
À morte inerte, tumular

Ficaram-me os prazeres e as dores
Os ódios e os amores
A fome e a fartura

Ficou de mim a semente
De outra vida, de outra gente
Ficou-me, a lucidez e a loucura

Não teci a morte
Teci a sorte
Escrevi o fado

Que me tece
Que adormece
Meu sonho cálido...

jorge@antunes

1 comentário:

Lucia disse...

Simplesmente maravilhoso!


Lúcia

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